segunda-feira, 18 de junho de 2012

sábado, 16 de junho de 2012

Pernas Estúpidas


Pernas Estúpidas
Vania Vasconcelos

Porque os corpos se entendem / mas as almas não.
Manuel Bandeira 

Quando entrei na loja de revistas do aeroporto, dez anos e dois filhos depois, senti mesmo uma zonzeira estranha, mas não tinha idéia. Sabe quando a gente entra num lugar e sente olhos que avaliam? Ou não avaliam, apenas olham, mas é assim que a gente se sente, sei lá. Neura feminina. Taquicardia leve, pressentimento. Conferi: naquele dia estava tudo bem – cabelo lavado, saia do tamanho certo, pernas bem depiladas, salto bom, perfume em dia e batom preferido. Tudo confortável e tranqüilo: meninos sadios e dias de paz com o marido, reunidos em cinco dias de folga e viagem, perfeito como quase nunca. Então entrara na loja, sozinha e plena, feliz no papel de compradora das revistas da família. Sabe quando a gente se sente bem com a idade que tem e até mais beleza do que de fato há? É bom, não é, Madá? Necessário que seja assim, às vezes. Nunca pensei que entrar numa loja fosse complicar tudo! Tá bom, calma, conto. Não estou enrolando, é que esses preâmbulos são importantes, Madá! Dez anos depois, já pensou? Quando vi o perfil dele entre as revistas de política, tomei um susto e neguei. Claro que não é ele, imagine, soube que está morando fora a mais de cinco anos. Fiquei paralisada em frente ao balcão de revistas femininas, bestamente estática, até que percebi que ele olhava e sorria. Não, nem precisei olhar outra vez para saber que era ele. E o arrepio na espinha? Pois é, num esforço absurdo consegui pegar uma revista. Não sei qual, Madá, tá louca? Peguei e fiquei fingindo que via alguma coisa. Coração na boca, minha nega, pulando.
Foi no tempo do Mestrado em Ciências Sociais, ele vinha do Jornalismo e eu, da Pedagogia, cê sabe, essas misturas aproximam os seres estranhos dos mestrados alheios. Pois ele era meu colega e, desde as primeiras aulas, havia algo entre nós... sei lá, era alguma coisa além do além. No começo, vivíamos nos divertindo de irritar um ao outro nas discussões em sala de aula. Discordávamos mesmo de quase tudo, mas, aos poucos, percebi que era mais um jogo de provocação e me pegava pensando em como discordar dele de maneira mais inteligente, sabe? Claro que já era casada, faz as contas. Dois anos, sem filhos. Pois é. Não, estava tudo bem com Henrique. Vivíamos bem, nunca brigávamos, tempo de sobra pra cinema e pequenas viagens.. é, Henrique sempre foi muito distraído. Nunca foi de romancinho, nem grande paixão, mas sempre foi meu amor da vida inteira. Gosto dele, Madá, desde sempre. Não, nunca teve essa coisa de pele queimando, nem nada. Acredita que nunca nem dançamos juntos? Nunquinha. Pois é, então, aparece ele, o outro, e começa a implicar comigo. Aquela coisa de brigar com ele, o jeito cínico como me provocava, ah, Madá, não parava de pensar nele. Então começaram os e-mails, os poemas trocados. Ele tinha mania de trocar os nomes dos poetas só pra me irritar, mas não havia mais irritação nenhuma. Ríamos da brincadeira de contrariar e, aos poucos, foi ficando quente demais. Um dia, não chegou para a aula de terça. Saí. Estava lá, debaixo da mangueira, perto da cantina, fumando. Cheguei perto, sentei, perguntei se havia acontecido alguma coisa. Pediu uma bebida e sentou-se muito perto de mim. Foi falando devagar, o rosto quase colado, foi dizendo o poema intero, olhando no meu olho, sem piscar: A primeira vez que vi Teresa /Achei que ela tinha pernas estúpidas /Achei também que a cara parecia com a perna /Quando vi Teresa de novo /Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo /(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse) /Da terceira vez não vi mais nada /Os céus se misturaram com a terra /E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas. Assim, Madá, sem parar, é mole? e depois, como se sempre tivesse feito isso, como se fosse nada, me beijou, beijou, beijou, olhos, boca, nuca... ai, Madá, fui pegando fogo, como se fosse isso mesmo que sempre tivera que ter acontecido. Ah, nunca fui tão feliz por me chamar de Teresa. Foi ele que me fez gostar do meu nome. Não conhecia antes o poema. Pesquisei e descobri que era Bandeira, mas ele tinha dito Drummond. Então, daí, ele sempre dizia o comecinho do poema e depois: Drummond!e eu ria muito, mas meu coração ficava aos pulos. Química? Combustão pura. Pele em brasa, Madá, febre, febre, coisa sem fim.
Não, nunca pensei em me separar de Henrique, nem falávamos disso. Magina! Eu continuava a amar Henrique sempre e queria cada vez mais cuidar dele, da vida dele, da nossa casa, nossa vida. Eu sabia que o outro era uma febre louca, necessária e louca, mas não tentei escapar, ao contrário, queria ir correnteza abaixo até naufragar. É verdade, se houvesse filhos, não sei. Ninguém descobriu. Íamos ao cinema juntos em plena segunda-feira e não víamos nenhum filme, nunca. Ele dizia ao meu ouvido Você tem pernas estúpidas e em ti os céus e a terra se misturam. Eu ria – Seja ao menos fiel ao poema – Ele ria – Drummond não te merece. E eu – Bandeira! Nunca beijei tanto alguém como beijei esse homem. Depois? Passou. Ele viajou por seis meses, eu estive afastada cuidando da dissertação, Henrique andou adoentado, foi passando e um belo dia não nos ligávamos mais. Sabe o que é isso , Madá? Dez anos e dois filhos depois, as águas calmas e frias, aparece esse homem no meio das revistas. Então? Cumprimento ou não? Como se cumprimenta um ex-amante daquele calibre, Madá? Também não sei. Fechei os olhos, virei fingindo procurar outra revista, acho que rezei um pouco, mas sabia que um maremoto formava-se em algum lugar de mim. Então resolvi cumprimentar, afinal, pensei, somos adultos.
Quando me voltei, ele tinha desaparecido. As mãos esfriaram mais uma vez, temi que quisesse correr à porta, mas me segurei no salto e escolhi as revistas para as crianças, para Henrique peguei duas, e uma para mim. Quando tirei o dinheiro para pagar, a moça do caixa me entregou dois livros que o homem de barba havia deixado: um livro de Bandeira – Estrela da Vida Inteira, com a dedicatória Você ainda tem pernas maravilhosamente estúpidas – e o outro de Drummond – O Amor Natural – escrita a frase ...ainda há poemas para você em mim, com o telefone e e-mail. Se liguei, Madá? Céus e Terra se misturaram e o Espírito de Deus, minha nega... (p. 109)



Conto extraído do livro: Quantas de Nós (contos). 
Autoras: Maria Thereza Leite, Vania Vasconcelos e Cleudene Aragão et al.
Edição:  Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.
144 p.
 (Prêmio Moreira Campos, 2010).

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O amor é assintomático.

Como pude? Me peguei pensando "porque o novato do meu trabalho não olha pra mim?". Ele não é bonito, tem feições particularmente estranhas, fala pouco, pouco interage com os demais. Certa vez me peguei falando em um tom de voz mais alto para chamar-lhe a atenção. Quando percebi que estava agindo assim fiquei vermelha. O bom de ter a pele escura é que, em momentos constrangedores como estes, o ruborizado não aparece. Acho que quem agiu foi o meu instinto de animal feminino, irracional mesmo. Serpente que seduz a presa na direção de uma armadilha. Mas é bem verdade que esse instinto em mim não é proposital. Se eu me pegar flertando, acabou o encanto pra mim. E quando o assunto é apaixonar-se por outra pessoa, sou assintomática. Coração não palpita, não há nervosismo, mãos suadas e pernas bambas também não há. E nem no momento da perda essa paixão é percebida. Dias após, meses após, eu me toco que não paro de pensar naquela pessoa que sempre esteve do meu lado. Puta merda! Novamente o perdido tempo colocou suas garras de fora. Mas essas bobagens da vida são assim mesmo, um fato não ocorrido e o carinha esquisito do trabalho puxa um papo e me da um sorriso. Dou um sorriso amarelo, encerro o papo e me  retiro da sala. Eu hein?! que cara mais esquisito!